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A mostrar mensagens de fevereiro, 2012

Um primeiro parágrafo exemplar

«Deixara de ser uma simples rua, era agora um mundo, um tempo e espaço de cinza a tombar e quase noite. Ele caminhava para norte através do entulho e da lama e havia pessoas que o ultrapassavam a correr, com toalhas encostadas ao rosto ou casacos a cobrir a cabeça. Tapavam a boca com lenços de assoar. Traziam sapatos nas mãos, uma mulher com um sapato em cada mão surgiu a correr e deixou-o para trás. Corriam e estatelavam-se, algumas, confusas e desajeitadas, com destroços a tombarem à sua volta, e havia pessoas a abrigarem-se debaixo dos automóveis.» Don DeLillo, O Homem em Queda Edição: Sextante Editora  Tradução (como sempre, irrepreensível): Paulo Faria

A génese

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«Adoro crianças porque me lembram aquilo que nunca poderei recuperar.» Dexter Morgan, Dexter

Os velhos

Ao subir as escadas, o cheiro bafiento que sai da porta do 1º esquerdo é ignorado. É uma casa de velhos, todos o sabem. Os velhos vivem no bafio, é senso comum, portanto para quê parar? A higiene dos velhos não importa. Todos esperam que o bafio desapareça, mas não pela mão altruísta da limpeza; antes pela antecipação da morte.

Inteligência, convivência, confidência

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Aleksandr Blok

[...] Tens uma cicatriz no pescoço, Kátia, a cicatriz de uma facada. No peito, Kátia, tens uma unhada fresca!     Eh, eh, dança!     Que pernas tão bonitas! Levavas roupa de rendas; por que não agora? Fodias com oficiais, por que não agora?     Fode, fode!     O coração salta-me no peito! Recordas, Kátia, aquele oficial, que não se salvou da navalha... Não te lembras dele? Ou não tens a memória fresca?     Eh, eh, refresca-a,     mete-me na cama contigo! Polainas cinzentas levavas, e tomavas chocolate, ias prà cama com cadetes... Agora vais com soldados? [...] Do poema  «Os Doze», de Aleksandr Blok Poetas Russos Edição: Relógio d'Água Tradução e prólogo: Manuel de Seabra

O dilema

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Os imbecis e a acústica

Há imbecis que, por falta de noções básicas de acústica, ainda não perceberam que também as palavras fazem ricochete.

Escadote

Na subida, são as mãos que arbitram; na descida, são os pés. Daí a vertigem: o que está abaixo dos pés não é poético, não convoca sonhos nem ambições. É, no fundo, o território do fracasso. É sempre lá em cima, com as mãos próximas da cabeça, que ambicionamos encontrar a glória. Por isso aquele homem que muitos julgam estranho ainda não desceu do escadote. Observe-se com atenção: não se atreve, sequer, a olhar para os pés. 

Esquecimento

Em nenhum outro lugar se cultiva de forma tão admirável a arte do esquecimento. Assim se explica a escassez de revoluções. E a abundância de surpresas. É um país espiritualmente desenvolvido - sabe como nascer todos os dias.

Kjersti Annesdatter Skomsvold

«Sinto necessidade de me coçar até sangrar. Isto rima um pouco. Talvez tenham sido as picadas de mosquito que sofri lá fora, no escuro, ou a adrenalina que sobra do enterro, ou o panfleto sobre a reunião que me mantiveram acordada toda a noite. Olho para a minha ponta de dedo sangrenta. Adorável, outro sinal de que estou viva, como também o é ver a minha respiração na janela da cozinha enquanto verifico os meus dentes.» Kjersti Annesdatter Skomsvold, Quanto Mais Depressa Ando, Mais Pequena Sou Edição: Eucleia Editora Tradução: João Reis

Um lema para 2012

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Gesto vão

Já tentei, em gesto vão, acariciar-te as mãos. Teimo no defeito de esquecer que o gelo que em ti corre as amputou, para no seu lugar deixar dois cotos perigosos.  

Também a lucidez precisa de descanso

    A tua incansável lucidez acabará por te seduzir até ao território da loucura.

Nevoeiro

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Nevoeiro, Brassaï, 1934     Hoje vi um nevoeiro assim, apesar de não estar em Paris e a noite já ter partido. Com ele corrigi um erro fundamental de visão.